29 de maio de 2009

Fumar

Por vezes sinto a necessidade de um cigarro: não do relaxante influxo da nicotina, nem do nevoeiro intoxicante da combustão do tabaco, mas do alheamento, da cortina prateada com que o acto de fumar envolve uma pessoa.

Reparo muitas vezes no ar de ancião com que os fumadores ficam quando são obrigados a vir cá fora: é quase como se se viessem sentar à sombra de algo maior; em cada 'passa' parece que sorvem o mundo com mais intensidade do que os outros, retiram-lhe essência para depois a analisarem profundamente enquanto, com a calma de quem tem nos bolsos todo o tempo, bufam os vapores de um comboio que viajou por terras infinitas.

19 de maio de 2009

Anotação XXII

E o mundo é uma flor que desabrocha calmamente com o caminhar dos anos, enquanto idiotas hiper-racionais se perdem em análises esterilizantes, grotescamente mecânicas para a sua humanidade, sobre a taxa de variação da abertura da corola com o tempo.

2 de maio de 2009

Sabedoria

Normalmente aprende-se com a repetição. Quantas foram as vezes que procuramos o lápis em cima da mesa e debaixo da mesa, no porta-lápis, na sala ao lado e o maldito pedaço de grafite emoldurada estava pendurado na nossa orelha? Quantas vezes não sabemos dos óculos e eles estão suportados no topo da cabeça? E exemplos destes há aos pontapés! Por essa razão, era de esperar que houvesse, vá lá, uma organização de pessoas que mensalmente enviassem uma cartinha para casa de cada um de nós com um aviso parecido a este: "Não se esqueça, caro cidadão, que o que procura está na maior parte das vezes (e era aqui que introduziam uns dados estatísticos) «debaixo do seu nariz». Obrigado e até ao próximo mês." Mas não; e por isso continuamos a cair sempre na mesma, digamos assim, armadilha da lógica.
Por esta razão, não é supreendente que também a sabedoria esteja mesmo debaixo das nossas frondosas fossas nasais. Muitos podem dizer que não: que a sabedoria é uma coisa altamente complexa e que se vai ganhando à medida que empurramos o nosso tempo para o fim. Sim senhor, bem visto, a questão é que há livros, provérbios e uma epidemia, para a qual não há cura, que se chama cultura. Este tripé suporta um enorme vaso de sabedoria para dentro do qual cuspiram muitos homens as mais sublimes e geniais considerações sobre a vida, o mundo e o homem. Pois é; e então porque é que continuamos a tropeçar? Porque continuamos a andar feitos macambúzios a varrer o chão com as mãos? Eu acho que talvez isso se deva à necessidade que temos de tocar nas coisas; ao nosso cepticismo sensorial. Mesmo os mais "ovelhas" têm essa necessidade, quase infantil: não acreditam que é quente enquanto não se escaldarem; não acreditam que aleija enquanto não se magoarem; e por aí fora.
Já li muitas coisas bonitas sobre a vida; já ouvi óptimas crónicas de costumes, critícas incríveis aos nossos hábitos, e assim como eu, toda a gente já terá ouvido. Isso mudou alguma coisa? Continuamos a errar da mesma maneira, continuamos a sofrer desamparadamente da mesma maneira; insistimos em sermos da mesma maneira enquanto não sentirmos na pele o ferro quente a que costumamos chamar sabedoria.
Por isso, por mais que saibamos a teoria, ela não nos serve de nada enquanto não a exercitarmos. O problema é exercitá-la: no fundo, viver é um desporto muito imprevisível e não depende de nós escolher quando e como o vamos praticar. Mas nós não vivemos a toda a hora?, isto é, estar vivo não é uma condição inerente à nossa existência? Bem, sim e não - biologicamente sim, mas, humanisticamente, não. O que interessa para a sabedoria não é a longevidade temporal - podes ter 150 anos e ser um autêntico idiota; o que interessa é o tempo útil que passaste a batalhar contra o meio que te envolve, o tempo que perdeste a resolver os teus problemas e a contrariar o peso do mundo que insistentemente te empurra para o chão. É assim que exercitas a sabedoria que vem nos livros - que é a tal teoria. Pois então, impõe-se que vivâmos; impõe-se que, qual miudagem travessa, nos besuntemos na lama da vida, para sabermos de facto do que ela se trata.

N'A mulher certa, Sandor Marai, na voz da sensata e perspicaz Judit diz: "Apiedei-me dele, por ter crescido num quarto desinfectado como uma sala de operações. Tive a sensação de que alguém educado num ambiente assim não pode ser uma pessoa completa e saudável... só pode parecer!... Assemelhar-se a uma pessoa. Foi o que senti."